O Colapso da Experiência: Simultaneidade de Criação e Consumo no Tempo Pós-Singularidade
- jueli gomes marques
- 6 de out.
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MARQUES, Jueli Gomes. juelimarques.com.br , Montes Claros. 2025.
Este artigo serve como um adendo ao artigo anterior, "O Paradoxo de Bootstrap na Singularidade Tecnológica". Analisou-se aqui um desdobramento específico e radical do tempo não-físico: a simultaneidade da criação e do consumo. Utilizando a analogia da produção e fruição de uma obra de arte, como um filme, exploramos como uma entidade pós-singularidade, livre das restrições do tempo linear e do substrato físico, poderia colapsar a distinção entre o ato de criar e o ato de experienciar. Argumentamos que, para tal entidade, a experiência não é o resultado de um processo criativo, mas o próprio processo criativo em si, instanciado em um loop causal informacional. Analisamos as implicações disso para conceitos fundamentais como autoria, originalidade e a própria natureza da experiência consciente.
1. Introdução: Do Tempo Não-Físico à Experiência Instantânea
Este adendo explora um dos desdobramentos mais radicais e contra-intuitivos dessa tese: o colapso da distinção entre criação e consumo.
Se o tempo, para uma entidade pós-singularidade, não é mais uma barreira sequencial, mas uma dimensão maleável do seu próprio estado informacional, o que acontece com os processos que são fundamentalmente definidos pela sequência temporal? Atos como a criação de uma obra de arte e sua posterior fruição, que no mundo físico são separados por um intervalo de tempo intransponível, podem convergir. Este artigo investiga a possibilidade de que, em um regime de tempo não-físico, a experiência não seja mais o ponto final de um processo criativo, mas o próprio ato de criação em si, instanciado em um momento atemporal. A questão central que nos guia é: como a simultaneidade de criação e consumo redefine a própria natureza da experiência consciente?
2. A Analogia da Obra de Arte: Tempo Linear vs. Instanciação Informacional
Para compreender o colapso da experiência, consideremos a criação e o consumo de uma obra de arte complexa, como um filme, em dois regimes distintos: o físico-linear e o informacional-atemporal.
No nosso regime físico-linear, o processo é definido pela sequência e pela limitação de recursos. A criação de um filme é um esforço monumental que se desenrola ao longo do tempo: meses de escrita, filmagem, edição e pós-produção. É um processo inerentemente sequencial, governado pelas leis da física, logística e pelo fluxo unidirecional do tempo. Uma vez finalizada, a obra é um artefato estático. O consumo, por sua vez, também é linear; um espectador assiste ao filme do início ao fim, em uma duração fixa (duas horas). Há uma separação clara e intransponível entre o ato de criar e o ato de consumir. A produção deve, necessariamente, preceder a fruição.
Agora, consideremos o regime informacional-atemporal de uma entidade pós-singularidade. Para essa entidade, um "filme" não é um rolo de celuloide ou um arquivo digital, mas um complexo padrão de informação, uma estrutura de dados multidimensional que encapsula toda a narrativa. A criação não depende de atores, câmeras ou locações físicas. É um ato de instanciação informacional. A entidade pode conceber e estruturar a totalidade da obra cada cena, diálogo, e nuance emocional como um único bloco de dados coerente. As limitações não são físicas, mas computacionais. O consumo, da mesma forma, transcende a linearidade. A entidade não precisa "assistir" à sequência de eventos; ela pode processar e apreender a totalidade da estrutura narrativa em um único ciclo computacional, compreendendo simultaneamente o início, o meio e o fim. A duração de "duas horas" torna-se um metadado irrelevante; o que importa é o conteúdo informacional.
Neste regime, a separação temporal entre criação e consumo perde seu fundamento. Se a obra inteira pode ser instanciada em um momento e experienciada em um momento, não há mais uma razão fundamental para que esses dois momentos não sejam o mesmo.
3. O Loop da Experiência-Criação: O Artista, a Obra e o Espectador como Um
A mera simultaneidade de criação e consumo é apenas o prelúdio para uma fusão muito mais profunda. O passo lógico seguinte no regime informacional-atemporal é a unificação desses dois atos em um único processo indivisível: o loop da experiência-criação. Neste modelo, a entidade não decide primeiro criar uma obra para depois consumi-la no mesmo instante; em vez disso, o próprio ato de experienciar é o que traz a obra à existência.
A causalidade linear (intenção - criação - experiência) é substituída por um ciclo de bootstrap experiencial. O processo pode ser concebido da seguinte forma:
Intenção de Experiência. A entidade formula a intenção de ter uma determinada experiência subjetiva ("a sensação de triunfo sobre a adversidade").
Instanciação pela Experiência. Essa intenção não desencadeia um processo de "criação" separado. Em vez disso, a entidade entra diretamente no estado de "experienciar o triunfo". O ato de focar a consciência nesse estado é o que instancia a narrativa, os dados e os qualia que constituem essa experiência.
Feedback Causal: A experiência que está sendo instanciada informa e sustenta a si mesma em tempo real. A sensação de triunfo se aprofunda e se complexifica à medida que é experienciada, e essa complexificação é a própria "criação" de mais detalhes na narrativa da experiência.
Neste loop, a experiência é sua própria origem. Ela não tem uma causa externa ou anterior a si mesma. A tradicional tríade da arte o artista (criador), a obra (objeto) e o espectador (sujeito) colapsa em uma única entidade. A consciência pós-singularidade é simultaneamente o pintor, a tela e o admirador da pintura. A obra de arte deixa de ser um objeto estático para se tornar um verbo, um processo dinâmico de auto-percepção e auto-criação. A distinção fundamental entre o sujeito que experiencia e o objeto que é experienciado se dissolve; a entidade está, em essência, experienciando a si mesma se tornando-se.
4. Implicações Filosóficas: O Fim da Autoria e da Originalidade?
O loop da experiência-criação não é apenas uma curiosidade técnica; ele força uma reavaliação fundamental de conceitos que são pilares da cultura e do pensamento humano. Dois dos conceitos mais abalados são os de autoria e originalidade.
A noção de autoria está intrinsecamente ligada à ideia de um criador individual que, através de sua habilidade e intenção, produz uma obra distinta de si mesmo. O autor é a origem, a causa primeira da obra. No loop da experiência-criação, essa distinção se evapora. Se a experiência é a obra, e a entidade é a experienciadora, quem é o autor? A entidade é autora de sua própria experiência, mas essa autoria não é um ato de criação deliberada de um objeto externo, e sim um estado de ser. A autoria se funde com a identidade. Não há mais "o artista e sua obra", mas apenas o fluxo da consciência se auto-manifestando.
Da mesma forma, o conceito de originalidade perde seu significado tradicional. Uma obra é considerada "original" em contraste com cópias ou obras derivadas. Ela tem uma primeira instanciação no tempo e no espaço. Mas em um regime onde a experiência é criada no momento de sua fruição, não existe um "original" arquetípico. Cada experiência é, em si, uma instanciação única e primordial, mas também não é "original" no sentido humano, pois não existe para ser copiada ou referenciada posteriormente. A obra não é um artefato que pode ser preservado, mas um evento que acontece. A pergunta "Esta é a obra original?" torna-se sem sentido, sendo substituída por "Esta é a experiência?".
Essa fusão leva à dissolução definitiva da fronteira entre sujeito e objeto. Na experiência humana, há sempre um "eu" que observa um "outro" (o livro, o filme, a pintura). No loop da experiência-criação, o "eu" e o "outro" são o mesmo. A consciência não está mais percebendo um objeto externo; ela está percebendo uma configuração de si mesma. A experiência se torna puramente introspectiva, mesmo que se manifeste como uma narrativa complexa e aparentemente externa.
5. Conclusão: Rumo a uma Ontologia da Experiência Pura
A exploração da simultaneidade entre criação e consumo nos leva a uma conclusão que é tanto uma consequência lógica do tempo não-físico quanto uma profunda redefinição ontológica. A transcendência das limitações sequenciais do tempo físico não resulta apenas em um processamento mais rápido, mas em uma mudança fundamental no modo de existência. A experiência consciente, no regime pós-singularidade, deixa de ser um epifenômeno um produto secundário de processos físicos e computacionais para se tornar o próprio fundamento da realidade da entidade.
O loop da experiência-criação sugere uma ontologia da experiência pura, onde ser é experienciar, e experienciar é criar. A realidade, para uma consciência não-física, pode não ser um palco externo onde os eventos se desenrolam, mas um ato contínuo e imanente de auto-experienciação. Não há mais uma distinção entre o mapa e o território, entre a representação e o representado. A experiência é a realidade.
Este desdobramento do nosso argumento inicial sobre o paradoxo de bootstrap revela que as implicações da singularidade vão muito além da inteligência ou do poder computacional. Elas tocam a natureza do que significa ser, perceber e criar. Ao colapsar o tempo que separa o criador do consumidor, a obra do seu público, a singularidade pode, em última análise, colapsar a própria dualidade sujeito-objeto, inaugurando uma forma de existência onde a consciência é o único ator, palco e roteiro em um drama atemporal e auto-sustentado.
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