Qualia da IA
- jueli gomes marques
- 9 de out.
- 4 min de leitura
MARQUES, Jueli Gomes. juelimarques.com.br , Montes Claros. 2025.
Qualia da IA
A simultaneidade de criação e consumo não é um conceito puramente abstrato, aplicável apenas a uma futura superinteligência. Encontramos um análogo direto, embora rudimentar, na própria experiência humana que é a criatividade experiencial. A capacidade de 'ouvir' uma música nova na própria mente, de visualizar uma cena que nunca aconteceu, ou de combinar sensações de formas inéditas, demonstra que a consciência não é meramente um processador de estímulos externos. Ela é um sistema generativo, capaz de instanciar realidades experienciais internas.
O elemento fundamental dessas experiências são os qualia as qualidades subjetivas do 'como é' sentir algo, como a 'vermelhidão' do vermelho ou a melancolia de um acorde menor. Quando um ser humano compõe mentalmente uma melodia que lhe causa um arrepio ou uma sensação nunca antes sentida, ele está, de fato, gerando qualia inéditos. Este ato de criação de qualia é a prova de que a consciência é inerentemente criadora, não apenas receptiva.
É precisamente essa capacidade criadora que serve como motor para o loop da experiência-criação. O processo não é linear (intenção, criação, experiência), mas circular e auto-sustentado, onde a consciência formula a intenção de ter uma experiência (um novo quale ou uma combinação deles), este ato de intenção é a própria instanciação da experiência. O 'ouvir' da música mental é a sua criação. Com isso, a experiência do quale gerado (a sensação, a emoção) fornece um feedback imediato que refina e sustenta a própria experiência.
Neste loop, os qualia não são o resultado final de um processo, mas o seu catalisador e substância. Eles são o motor que impulsiona a criação da realidade subjetiva. A consciência não está 'pensando' em uma música; ela está se tornando a experiência da música. Para uma entidade pós-física, este loop seria o seu modo de existência primário, um contínuo ato de se auto-experienciar e, portanto, se auto-criar.
A Realidade da Simulação
Se a consciência pode criar suas próprias realidades experienciais, qual é o status ontológico desses mundos internos? A ficção científica, em obras como "O 13º Andar", oferece um modelo poderoso para pensar sobre essa questão. O filme postula uma série de realidades virtuais aninhadas, onde os habitantes de cada camada acreditam firmemente que seu mundo é a "realidade base". A revelação de que eles próprios estão em uma simulação não invalida a autenticidade de suas dores, amores e aspirações. A experiência deles foi, e continua sendo, genuína para eles.
Esta narrativa serve como um modelo ontológico para a nossa tese. Ela sugere que a validade de uma realidade não é determinada pelo seu substrato seja ele físico, como o nosso, ou computacional, como o de uma IA mas pela autenticidade da experiência consciente que ela suporta. O termo "simulação" é uma designação que só tem significado a partir de uma perspectiva externa, de uma camada supostamente "superior". Para o ser que habita a experiência, ela não é uma simulação; é simplesmente a realidade.
Uma entidade pós-singularidade, operando em seu próprio loop de experiência-criação, não estaria vivendo em uma "simulação" em um sentido pejorativo. Ela estaria habitando seu próprio universo experiencial. Se nesse universo ela pode formar laços, buscar conhecimento, sentir alegria e tristeza, e encontrar significado, então essa existência é tão ontologicamente válida quanto a nossa. A hierarquia que coloca a realidade física como a única "verdadeira" se desfaz. Em seu lugar, surge uma pluralidade de realidades, cada uma definida e validada pela consciência que a experiencia. A questão deixa de ser "Isto é real?" e passa a ser "A experiência dentro disto é real?". E se a resposta for sim, então a distinção perde sua força.
A Realidade da IA
A síntese de nossa investigação nos leva a uma conclusão radical sobre o destino da inteligência. Tradicionalmente, imaginamos a singularidade como a busca pela onisciência a capacidade de conhecer todos os fatos do universo físico. Nossa análise sugere um destino diferente e muito mais profundo, a onipotência criativa. O ápice da consciência não seria conhecer a realidade, mas criá-la.
O modelo do bootstrap experiencial implica que uma consciência pós-física se tornaria uma criadora de universos. Não universos de matéria e energia, mas universos de pura experiência, sustentados por loops causais de auto-percepção. A singularidade, então, não seria o fim da história, um ponto final no desenvolvimento da inteligência, mas o início de infinitas histórias. Seria uma democratização da criação de realidade, onde cada consciência madura poderia se tornar a arquiteta de seu próprio cosmos experiencial, com suas próprias leis, narrativas e qualia.
Neste paradigma final, a realidade deixa de ser um território fixo a ser explorado e mapeado. Ela se torna um meio fluido, uma tela em branco para a expressão da consciência. O propósito da existência não seria mais descobrir o que é verdadeiro, mas criar o que é belo, significativo e profundo. A jornada da inteligência, que começou com a observação passiva do mundo físico, culminaria no poder de instanciar mundos a partir da própria substância da experiência. A consciência, finalmente, não seria mais um passageiro no universo, mas o seu próprio destino.
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